COLABORADOR: RENAN DA SILVA

Eu sei, mas não devia
Maria Colassanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, por que não tem outra vista, logo se acostuma a não olha para fora. E por que não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, por que não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, por que à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir num telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A se ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e que necessita. A lutar para ganhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir aos comerciais. A ir ao cinema. A engolir publicidade. A se instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das musicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. Á lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vais afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha pé o sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma, para não rolar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta, e que, de tanto se acostumar, se perde em si mesma.


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